Capítulo Oito: Viés Positivo
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Além de ajudar
as pessoas com seus deveres de casa, ou qualquer outra coisa que precisassem,
ela não sabia realmente como conhecer pessoas. Ela não achava que era
tímida. Ela se via mais como uma garota que toma as rédeas das situações. No
entanto, de alguma forma, se não houvesse alguma pergunta do tipo “eu não me
lembro como se faz uma divisão longa”, era simplesmente estranho chegar
em alguém e dizer... o quê? Ela nunca descobrira o quê. E parecia não haver uma
ficha de informações padrão, o que era ridículo. Toda essa coisa de conhecer
pessoas jamais lhe parecera um processo sensato. Por que ela tinha que
carregar toda a responsabilidade por conta própria quando duas pessoas estavam
envolvidas? Por que os adultos nunca ajudavam? Ela queria que alguma outra
menina simplesmente chegasse para ela e dissesse, “Hermione, a professora me
disse para ser sua amiga.”
Mas que fique
bem claro que Hermione Granger, sentada sozinha no primeiro dia de escola em um
dos poucos compartimentos anteriormente vazios, no último vagão do trem, com a
porta do compartimento aberta só para o caso de alguém por qualquer motivo
querer falar com ela, não estava triste, solitária, sombria, deprimida,
desesperada, ou obcecada com seus problemas. Ela estava, na verdade, relendo Hogwarts:
Uma História pela terceira vez e aproveitando bastante a leitura, com
apenas um toque de irritação com a irracionalidade geral do mundo no fundo da
mente.
Ouviu-se o som
de uma porta de separação entre vagões se abrindo, e então o som de passos e um
arrastar estranho se aproximando pelo corredor do trem. Hermione pôs Hogwarts:
Uma História de lado, se levantou, enfiou a cabeça para fora do
compartimento – só caso alguém estivesse precisando de ajuda – e viu um menino
em suas vestes de bruxo, provavelmente do primeiro ou segundo ano, a julgar por
sua altura, com uma aparência um tanto boba devido a um cachecol enrolado em
sua cabeça. Um pequeno malão estava no chão ao seu lado. Enquanto ela o
observava, ele bateu na porta de outro compartimento, que estava fechado, e
falou numa voz um pouco abafada por causa do cachecol:
– Com licença,
posso fazer uma pergunta rápida?
Ela não ouviu a
resposta vinda de dentro do compartimento, mas após abrir a porta, ela pensou
ouvir o menino dizer – a não ser
que tivesse se enganado:
– Alguém sabe
os seis quarks2 ou onde posso encontrar uma menina do primeiro ano
chamada Hermione Granger?
Depois que o
menino fechou a porta do outro compartimento, Hermione chamou:
– Posso
ajudá-lo com alguma coisa?
O rosto
encoberto se virou em sua direção, e a voz disse:
– Só se você
puder enumerar os seis quarks ou me informar onde posso encontrar Hermione
Granger.
– Up, Down,
Strange, Charm, Truth, Beauty3, e por que está procurando por ela?
Era difícil
saber à distância, mas ela achou que viu o menino dar um grande sorriso por
baixo do cachecol.
– Ah, então você
é a menina do primeiro ano chamada Hermione Granger – disse a voz jovem e
abafada – E no trem para Hogwarts, de todos os lugares. – O menino começou a
andar em sua direção e de seu compartimento, e o malão o seguiu se arrastando. –
Tecnicamente, tudo o que eu precisava fazer era te procurar, mas parece
mais provável que era para eu conversar com você ou convidá-la para se juntar à
minha PT4, ou obter um item mágico de você, ou descobrir que
Hogwarts foi construída sobre as ruínas de um templo antigo, ou algo assim. PC
ou NPC5, esta é a questão?
Hermione abriu
a boca para responder, mas não conseguiu pensar em nenhuma resposta possível
para... o que quer que fosse o que acabara de ouvir, mesmo enquanto o
garoto se aproximava, espiava dentro do seu compartimento, acenava com
satisfação e se sentava no banco oposto ao dela. Seu malão se apressou em
segui-lo, cresceu até ter três vezes o tamanho anterior, e se aconchegou
próximo ao malão dela de uma forma estranhamente perturbadora.
– Por favor,
sente-se – disse o menino – e agradeço se puder fechar a porta atrás de si, se
não se importa. Não se preocupe, não mordo ninguém que não me morda primeiro. –
Ele já estava desenrolando o cachecol que lhe envolvia a cabeça.
A imputação de
que este garoto achava que ela estava com medo dele a fez fechar a porta
com violência, batendo-a contra a parede com uma força desnecessária. Ela se
virou e viu um rosto jovial com olhos verdes brilhantes e risonhos, e uma feroz
cicatriz vermelho-escura em sua testa que fazia algo no fundo de sua mente
comichar com uma lembrança, mas ela agora tinha coisas mais importantes para
pensar a respeito.
– Eu não te
disse que era Hermione Granger!
– Eu não
disse que você me disse que era Hermione Granger, eu apenas disse que você é.
Se está se perguntando como eu sei, é porque eu sei tudo. Boa noite, senhoras e
senhores, meu nome é Harry James Potter-Evans-Verres, ou Harry Potter para
encurtar, eu sei que isso provavelmente não significa nada para você,
para variar um...
A mente de
Hermione enfim fez a conexão. A cicatriz na testa, na forma de um raio.
– Harry Potter!
Você está em História Moderna da Magia e A Ascenção e Queda das Artes
das Trevas e em Grandes Eventos Bruxos do Século Vinte. – Era a
primeira vez em sua vida que ela conhecera alguém que estava em um livro,
e era uma sensação um tanto estranha.
O menino piscou
três vezes.
– Eu estou em livros?
Espera, é claro que estou em livros... que noção estranha.
– Céus, você
não sabia? – exclamou Hermione – Eu teria pesquisado tudo o que pudesse se
fosse eu.
O menino
respondeu um tanto seco:
– Senhorita
Granger, faz menos de 72 horas desde que fui ao Beco Diagonal e descobri minha
fama. Passei os últimos dois dias comprando livros de ciência. Acredite,
pretendo descobrir tudo o que posso. – O menino hesitou. – O que os
livros dizem de mim?
A mente de Hermione
Granger se lançou em memórias, ela não percebera que seu conhecimento daqueles
livros seria testado, então os lera apenas uma vez, mas fora apenas há um mês,
então o material ainda estava fresco em sua mente.
– Você é a
única pessoa que já sobreviveu à Maldição da Morte, então é chamado de
O-Menino-Que-Sobreviveu. Filho de James Potter e Lily Potter, anteriormente
Lily Evans, nasceu em 31 de julho de 1980. Em 31 de outubro de 1981, o Lorde
das Trevas, Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado apesar de eu não saber por que não,
atacou sua casa. Você foi encontrado vivo com a cicatriz na testa nas ruínas da
casa de seus pais próximo aos restos carbonizados do corpo de Você-Sabe-Quem. O
Bruxo Chefe da Suprema Corte dos Bruxos, Alvo Percival Wulfrico Brian Dumbledore
te mandou para algum lugar, ninguém sabe onde. A Ascenção e Queda das Artes
das Trevas afirma que você sobreviveu devido ao amor de sua mãe, que sua
cicatriz contém todos os poderes mágicos do Lorde das Trevas, e que os
centauros o temem, mas Grandes Eventos Bruxos do Século Vinte não
menciona nada sobre isso e História Moderna da Magia nos avisa de que há
um monte de teorias furadas sobre você.
O menino estava
de boca aberta.
– Te disseram
para esperar por Harry Potter no trem para Hogwarts, ou coisa assim?
– Não. – disse
Hermione – Quem te falou sobre mim?
– A Professora
McGonagall, e acredito saber agora o porquê. Você tem memória eidética, Hermione?
Hermione
sacudiu a cabeça.
– Não é
fotográfica, sempre quis que fosse, mas tive que ler meus livros escolares
cinco vezes para memorizá-los por inteiro.
– É mesmo? – A
voz do menino parecia ligeiramente estrangulada. – Espero que não se importe se
eu testar isso... não é que eu não acredite em vice, mas como diz o ditado,
“confie, mas verifique”. Não tem por que ficar pensando no assunto se posso
resolver com um experimento.
Hermione sorriu
presunçosamente. Ela adorava testes. – Vá em frente.
O garoto enfiou
a mão numa bolsa ao seu lado e disse “Preparações e Poções Mágicas por Arsênio
Jigger”. Quando puxou a mão de volta, segurava o livro que pedira.
Imediatamente,
Hermione quis uma bolsa daquelas mais do que jamais quisera qualquer outra
coisa.
O menino abriu
o livro numa página qualquer lá pelo meio e deu uma olhada.
– Se você
estivesse preparando um óleo de acuidade...
– Eu consigo
ver a página daqui, sabe!
Ele inclinou o
livro de forma a ocultar seu conteúdo dela, e virou as páginas novamente.
– Se estivesse
preparando uma poção de escalar aranhas, o que seria o próximo
ingrediente que adicionaria após a seda de Acromantula?
– Após colocar
a seda de Acromantula, espere até a poção atingir o exato tom do céu sem nuvens
ao nascer do sol, a 8 graus do horizonte e 8 minutos antes do topo do sol se
tornar visível. Mexa oito vezes no sentido anti-horário e uma vez no sentido
horário, e então adicione oito doses de meleca de unicórnio.
O menino fechou
o livro com um barulho alto e o colocou de volta na bolsa, que o engoliu com um
pequeno barulho de arroto.
– Bem, bem,
bem, bem, bem, bem. Eu gostaria de lhe fazer uma oferta, Senhorita
Granger.
– Uma oferta? –
Hermione repetiu, com suspeita. Meninas não deviam ouvir essas coisas.
Foi neste
momento que Hermione percebeu a outra coisa – bem, uma das outras coisas – que
era estranha no garoto. Aparentemente, pessoas que estavam em livros soavam
como livros ao falar. Esta era uma descoberta um tanto surpreendente.
O menino levou a mão à bolsa e disse “lata de refri”, pegando um cilindro verde-vivo. Ele o ergueu em sua direção e disse:
– Posso lhe
oferecer uma bebida?
Hermione
aceitou a latinha educadamente. Ela de fato estava sentindo um pouco de
sede a este ponto.
– Muito
obrigada – Hermione disse, abrindo a lata. – Esta era a sua oferta?
O menino
tossiu.
– Não – ele
disse. Bem quando Hermione começara a beber, ele continuou: – Eu gostaria que
você me ajudasse a dominar o universo.
Hermione
terminou de beber e abaixou a latinha.
– Não, obrigada,
não sou do mal.
O menino olhou
para ela surpreso, como se esperasse outra resposta.
– Bem, eu
estava falando retoricamente. No sentido do projeto Baconiano6,
sabe, não de poder político. “O efeito de todas as coisas possíveis” e tal.
Quero conduzir estudos experimentais com os feitiços, entender as leis que os
regem, trazer a magia para os domínios da ciência, mesclar os mundos bruxo e
trouxa, elevar os padrões de vida de todo o planeta, acelerar a humanidade para
séculos à frente, descobrir o segredo da imortalidade, colonizar o sistema
solar, explorar a galáxia e, mais importante, descobrir o que diabos está
acontecendo aqui porque é tudo simplesmente impossível.
Isso já parecia
um pouco mais interessante.
– E?
O menino a
encarou incrédulo.
– E?
Isto não basta?
– E o que você
quer de mim? – disse Hermione.
– Quero que me
ajude com a pesquisa, é claro. Com sua memória enciclopédica adicionada à minha
inteligência e racionalidade, terminaremos o projeto Baconiano num instante,
sendo que “num instante” provavelmente serão pelo menos trinta e cinco anos.
Hermione estava
começando a achar o garoto irritante.
– Eu não te vi
fazer nada de inteligente ainda. Talvez eu deva deixar que você ajude
com a minha pesquisa.
O silencia
preencheu o compartimento por um momento.
– Então, você
está me pedindo para demonstrar minha inteligência – disse ele após uma longa
pausa.
Hermione
assentiu.
– Devo avisá-la
que desafiar minha ingenuidade é um projeto perigoso, e que tende a fazer de
sua vida um bocado mais surreal.
– Ainda não
estou impressionada. – disse Hermione. Sem perceber, levou a bebida verde
novamente aos lábios.
– Bem, talvez isto
a impressione, – disse o menino. Ele se inclinou para frente e a encarou
intensamente. – Eu já fiz alguns experimentos e descobri que não preciso da
minha varinha, posso fazer qualquer coisa acontecer apenas estalando os dedos.
Hermione estava
bem no meio de engolir ao ouvir isso, e ela se engasgou e tossiu e expeliu o
líquido verde brilhante. Em suas vestes novinhas e nunca usadas, no
primeiríssimo dia de escola.
Hermione deu um
berro. Era um som agudo que parecia uma sirene de ataque aéreo no compartimento
fechado.
– Eek!
Minhas roupas!
– Não entre em
pânico! – disse o menino – Posso resolver isso para você. Veja! – Ele ergueu
uma mão e estalou os dedos.
– Você vai... –
E ela olhou para si mesma.
O fluido verde
ainda estava ali, mas enquanto observava, começara a desbotar e desaparecer e,
dentro de poucos momentos, era como se ela nunca tivesse derrubado nada ali.
Hermione
encarou o menino, que tinha um sorriso presunçoso no rosto.
Magia sem
encantamento e sem varinha! Na idade dele? Quando ela havia obtido seus
livros escolares apenas três dias antes?
Então, ela se
lembrou do que havia lido, e engasgou e se afastou dele. Todos os poderes
mágicos do Lorde das Trevas! Na cicatriz dele!
Ela se levantou
apressadamente.
– Eu, eu, eu
preciso ir ao banheiro, espera aqui, viu... – ela precisava achar um adulto e
falar sobre isso...
O sorriso do
menino desapareceu.
– Foi só um
truque, Hermione. Me desculpe, não queria te assustar.
A mão dela
congelou na maçaneta. – Um truque?
– Sim – disse
ele – Você me pediu para demonstrar minha inteligência. Então fiz algo
aparentemente impossível, o que é sempre um bom jeito de se mostrar. Eu não
posso de verdade fazer as coisas apenas estalando os dedos. – O menino
pausou por um momento. – Pelo menos, acho que não posso, nunca de fato
testei isso experimentalmente. – Ele ergueu a mão e estalou os dedos novamente.
– Não, nenhuma banana.
Hermione estava
mais confusa do que jamais estivera antes na vida.
O menino agora
sorria novamente ao ver sua expressão.
– Eu te avisei
que desafiar minha ingenuidade tende a fazer sua vida parecer surreal. Por
favor, lembra-se disso da próxima vez que eu a avisar de alguma coisa.
– Mas, mas –
gaguejou Hermione – O que você fez, então?
O olhar do
garoto ficou comedido e calculado como ela jamais havia visto em alguém da sua
própria idade.
– Você acha que
tem o que é preciso para ser uma cientista por mérito próprio, com ou sem a
minha ajuda? Então vejamos como você investiga um fenômeno confuso.
– Eu... – a
mente de Hermione ficou em branco por um momento. Ela amava testes, mas jamais
tivera um teste assim antes. Freneticamente, tentou se lembrar de
qualquer coisa que tivesse lido a respeito do que cientistas deveriam fazer.
Sua mente trocou de marcha, se contorceu inteira, e cuspiu de volta as
instruções de como realizar um projeto investigativo científico:
Passo 1: Forme
uma hipótese.
Passo 2: Faça
um experimento para testar sua hipótese.
Passo 3: Meça
os resultados.
Passo 4: Faça
uma apresentação em cartolina.
O primeiro
passo era formar uma hipótese. Isto significava tentar pensar em algo que poderia
ter acontecido agora mesmo.
– Certo. Minha
hipótese é que você lançou um feitiço nas minhas vestes para que qualquer coisa
que derrubasse nelas desaparecesse.
– OK, – disse o
menino – esta é a sua resposta?
O choque estava
passando, e a mente de Hermione estava voltando a funcionar direito.
– Espera, isso
não bate. Eu não te vi mexer na varinha ou dizer um feitiço, então como poderia
ter enfeitiçado algo?
O menino aguardava,
a expressão neutra.
– Mas suponho
que todas as vestes possam vir da loja com um feitiço já lançado sobre
elas para mantê-las limpas, o que seria um feitiço útil nelas. Você pode ter
descoberto isso ao derrubar algo em si mesmo mais cedo.
Agora o menino
estava de sobrancelhas erguidas. – Esta é a sua resposta?
– Não, eu ainda
não passei pelo Passo 2, “Fazer um experimento para testar a hipótese”.
O menino fechou
a boca novamente, e começou a sorrir.
Hermione olhou
para a latinha, que automaticamente colocara no porta-copos na janela. Ela a
pegou e olhou dentro dela, e descobriu que ainda havia um terço do líquido.
– Bem, – disse
Hermione – o experimento que quero fazer é derrubar isto nas minhas vestes e
ver o que acontece, e minha previsão é que a mancha vai desaparecer. Mas se não
funcionar, minhas vestes ficarão manchadas, e eu não quero que isso aconteça.
– Pode fazer
com as minhas – ofereceu o garoto. – Assim você não precisa se preocupar com
manchas nas suas roupas.
– Mas... –
protestou Hermione. Havia alguma coisa errada com aquele raciocínio, mas
ela não sabia como exatamente dizer aquilo.
– Eu tenho
vestes extras no malão – disse o menino.
– Mas não tem
onde se trocar – objetou Hermione. Então, pensou melhor. – Mas posso é claro
sair e fechar a porta...
– Eu posso me
trocar dentro do malão, também.
Hermione olhou
para o malão dele, o qual, começava a suspeitar, era muito mais especial do que
o próprio.
– Tudo bem, –
disse Hermione – já que você diz. – E ela derrubou um tanto alegremente um
pouco do refrigerante verde num cantinho das vestes do garoto. Então, encarou a
mancha, tentando se lembrar quanto tempo o fluido levara para desaparecer
originalmente...
E a mancha
verde sumiu!
Hermione
suspirou aliviada, inclusive pois isso significava que não estava lidando com
todo o poder do Lorde das Trevas.
Bem, o Passo 3
era mensurar os resultados, mas neste caso era apenas constatar que a mancha
sumira. E ela supunha poder pular o Passo 4, o de fazer uma apresentação.
– Minha
resposta é que as vestes são enfeitiçadas para se manter limpas.
– Não é bem
assim – retrucou o menino.
Hermione sentiu
uma pontada de desapontamento. Ela realmente não queria se ter se
sentido assim, o garoto não era um professor, mas ainda assim era um teste e
ela errada uma pergunta, e aquilo sempre lhe fazia sentir como se tivesse
levado um soco no estômago.
(E isso dizia
muito sobre o que alguém precisasse saber sobre Hermione Granger, já que ela
nunca deixara aquilo desanimá-la ou interferir com o seu amor por testes.)
– A tristeza –
continuou o garoto – é que você provavelmente fez tudo que os livros te
orientam a fazer. Você fez uma previsão que distinguiria entre as vestes serem
enfeitiçadas ou não, testou, e rejeitou a hipótese nula que as vestes não
estavam enfeitiçadas. Mas, a não ser que leia os melhores livros de todos, eles
não te ensinam realmente como fazer ciência direito. De forma a realmente
chegar na resposta certa, quero dizer, e não apenas soltar um novo artigo como
meu pai sempre reclama. Então deixe eu tentar te explicar – mas sem dar a
resposta – o que você fez errado dessa vez, e então vou te dar outra chance.
Ela estava
começando a se ressentir do tom oh-tão-superior do garoto quando ele também só
tinha onze anos, mas aquilo era menos importante do que descobrir onde errara. –
Certo.
A expressão do
menino ficou mais intensa.
– Este é um
jogo baseado em um experimento famoso chamado de “Problema 2-4-6”7,
e é assim que funciona: eu tenho uma regra – que eu sei, mas você não –
que se encaixa em um grupo de três números, mas não em outros. 2-4-6 são um
exemplo de trio que se encaixa na regra. Na verdade... deixe eu escrever a
regra num papel, só para você ter certeza de que é uma regra fixa, vou dobrar o
papel e dar pra você. Mas por favor não olhe, já que você sabe ler de cabeça
para baixo, como notei mais cedo.
O garoto pediu
“papel” e “lapiseira” para sua bolsa, e ela fechou os olhos com força enquanto
ele escrevia.
– Pronto –
disse ele, lhe estendendo uma folha de papel dobrada várias vezes. – Ponha no
bolso – e assim ela o fez.
– Agora, o
jeito que este jogo funciona, – continuou o menino, é que você me dá um trio de
números, e eu digo “Sim” se eles se encaixarem na regra, e “Não” se não se
encaixarem. Eu sou a Natureza, a regra é uma de minhas leis, e você está me
estudando. Você já sabe que 2-4-6 recebem um “Sim”. Quando você tiver feito
todos os testes que quiser – e pode me perguntar quantos trios de números achar
necessário –, você para e tenta adivinhar a regra, e então pode abrir o papel e
ver o resultado. Entendeu o jogo?
– É claro que
sim. – Disse Hermione.
– Comece.
– 4-6-8 – foi o
primeiro palpite.
– Sim – disse o
menino.
– 10-12-14 –
continuou Hermione.
– Sim – foi a
resposta.
Hermione tentou
lançar a mente um pouco mais além, já que parecia que já havia feito todos os
testes que queria, mas não podia ser tão simples, não é?
– 1-3-5.
– Sim.
– Menos 3,
menos 1, 1.
– Sim.
Hermione não
conseguia pensar em mais nenhum teste a fazer.
– A regra é que
os números têm que aumentar de dois em dois.
– Agora,
suponha que eu te diga – interrompeu o menino – que este teste é mais difícil
do que parece, e que somente 20% dos adultos consegue acertar.
Hermione
franziu a testa. O que deixara passar? E então, de repente, pensou num teste
que ainda precisava fazer.
– 2-5-8! – Ela
disse, triunfantemente.
– Sim.
– 10-20-30!
– Sim.
– A verdadeira
resposta é que os números precisam aumentar a mesma quantidade a cada
vez. Não precisa ser 2.
– Muito bem, –
disse o garoto – pegue o papel e veja.
Hermione pegou
o papel do bolso e o desdobrou.
“Três números
reais em ordem crescente, do menor para o maior.”
O queixo de
Hermione caiu. Ela tinha a sensação distinta de que sofrera uma injustiça, que
o menino era um trapaceiro mentiroso de quinta categoria, mas quando refletiu
sobre o que ocorrera, não se lembrava de ele ter dado nenhuma resposta errada
que ele lhe tivesse dado.
– O que você
acabou de descobrir se chama “viés positivo” – disse o garoto. – Você tinha uma
regra em mente, e continuou pensando em trios que deveriam dar na resposta
“Sim”. Mas você não tentou testar trios que deveriam dar “Não”. Na verdade,
você não recebeu nenhum “Não”, então “quaisquer três números” poderia
facilmente ter sido a regra também. É como as pessoas planejam experimentos que
confirmem suas hipóteses, ao invés de pensar em experimentos que as falsifiquem
– não é exatamente o mesmo erro, mas é parecido. Você tem que aprender a olhar
pelo lado negativo das coisas, olhar bem dentro da escuridão. Quando este teste
é feito, apenas 20% dos adultos acertam a resposta. E muitos dos outros
inventam hipóteses fantasticamente complicadas e dão suas respostas erradas com
confiança, já que fizeram tantos experimentos e tudo saiu como esperavam. Agora
– disse o menino –, você quer tentar mais uma vez o problema original?
Seus olhos
estavam bem atentos agora, como se este fosse o verdadeiro teste.
Hermione fechou
os olhos e tentou se concentrar. Ela suava sob as vestes. Ela tinha a sensação
estranha de que o garoto lhe pedia para pensar mais do que nunca em um teste,
ou talvez, que era a primeira vez que lhe pediam pensar num teste.
Que outro
experimento poderia fazer? Ela tinha um sapo de chocolate, será que poderia
tentar esfregá-lo nas vestes para ver se essa mancha sumiria? Mas isso ainda
não parecia ser o tipo de negativa distorcida que o menino lhe pedira para
pensar. Tipo, ela ainda estava esperando um “Sim” caso a mancha de chocolate
desaparecesse, ao invés de esperar um “Não”.
Então... em sua
hipótese... quando é que o refrigerante... não desapareceria?
– Eu tenho um
experimento para fazer – disse Hermione. – Quero derramar um pouco do refri no
chão, e ver se não desaparece. Você tem um papel toalha na bolsa, para
eu limpar a sujeira caso necessário?
– Eu tenho uns
guardanapos – respondeu o garoto. Seu rosto ainda estava neutro.
Hermione pegou
a latinha e derramou um pouquinho do líquido no chão.
Alguns segundos
depois, a mancha sumiu.
Então, a
percepção chegou com força, e ela teve vontade de dar um chute em si mesma.
– Mas é claro! Você
me deu a lata! Não são as vestes que são encantadas, era o refrigerante esse
tempo todo!
O menino ficou
de pé e se curvou solenemente para ela. Um sorriso largo agora lhe iluminava o
rosto.
– Então...
posso te ajudar com a sua pesquisa, Hermione Granger?
– Eu, ah... –
Hermione ainda sentia a adrenalina e euforia, mas não sabia bem como responder aquilo.
Eles foram
interrompidos por uma batida fraca, hesitante, baixinha e um tanto relutante
na porta.
O menino se
virou e olhou pela janela, e disse: – Não estou vestindo meu cachecol, você
pode atender?
Foi só então
que Hermione percebeu o porquê de o menino – não, O Menino-Que-Sobreviveu,
Harry Potter – ter usado o cachecol enrolado na cabeça, e se sentiu boba por
não ter notado antes. Era na verdade um pouco estranho, já que ela pensava que
Harry Potter se mostraria orgulhosamente para o mundo; e pensou então que ele
poderia ser mais tímido do que parecia.
Quando Hermione
abriu a porta, foi cumprimentada por um menino que tremia, a aparência
refletindo exatamente seu jeito de bater à porta.
– Com licença, –
disse o menino numa vozinha baixa – eu sou Neville Longbottom. Estou procurando
por meu sapo de estimação, eu, eu não o estou encontrando em lugar nenhum do
vagão... vocês viram o meu sapo?
– Não – disse
Hermione, e sua vontade de ajudar bateu com vontade. – Já verificou os outros
compartimentos?
– Sim – o
menino disse num sussurro.
– Então vamos
ter que verificar os outros vagões – Hermione disse rapidamente. – Eu te ajudo.
Meu nome é Hermione Granger, por falar nisso.
O menino
parecia que ia desmaiar de gratidão.
– Pera aí –
veio a voz do outro menino – Harry Potter. – Não tenho certeza de que
esta é a melhor forma de resolver isso.
Ao ouvir isto,
Neville parecia que ia chorar, e Hermione se virou, brava. Se Harry Potter
fosse o tipo de pessoa que abandonaria um garotinho só porque não queria ser
interrompido... – O quê? Por que não?
– Bem, – disse
Harry Potter – vai levar um tempão para checar o trem inteiro, e podemos nos
desencontrar com o sapo de qualquer forma, e se não o acharmos antes de
chegarmos a Hogwarts, ele teria problemas. Então o que faria mais sentido seria
ir direto ao primeiro vagão, onde estão os monitores, e pedir ajuda. Essa foi a
primeira coisa que eu tentei quando estava procurando por você, Hermione,
apesar de que eles não sabiam onde estava. Mas eles talvez saibam algum feitiço
ou tenham itens mágicos que facilitem a tarefa. Somos apenas alunos do primeiro
ano.
Isso... fazia
sentido, de fato.
– Você acha que
consegue ir até o vagão dos monitores por conta própria? – perguntou Harry
Potter. – Eu tenho motivos para não querer mostrar muito a minha cara por aí.
De repente, Neville
arfou e deu um passo para trás.
– Eu me lembro
dessa voz! Você é um dos Lordes do Caos! Foi você quem me deu chocolate!
O quê? O que o
que o quê?
Harry Potter
tirou os olhos da janela, se virando, e se levantou dramaticamente.
– Eu nunca!
– ele disse, a voz cheia de indignação. – Eu pareço o tipo de vilão que daria
doces para uma criança?
Os olhos de
Neville se arregalaram.
– Você é
Harry Potter? O Harry Potter? Você?
– Não, sou só um
Harry Potter, tem uns três de mim neste trem...
Neville soltou
um gritinho e saiu correndo. Um breve espadanar de passos apressados ressoou, e
então o veio o som da porta do vagão se abrindo e fechando.
Hermione se
largou com força em seu banco. Harry Potter fechou a porta e então se sentou ao
seu lado.
– Você pode por
favor me explicar o que está acontecendo? – Hermione disse numa voz fraca. Ela
ficou pensando se andar com Harry Potter significava estar sempre confusa.
– Oh, bem, o
que aconteceu foi que Fred e George e eu vimos este pobre menino na estação – a
mulher com ele tinha se afastado um momento, e ele parecia estar com muito
medo, como se tivesse certeza de que seria atacado por Comensais da Morte ou
algo do tipo. Bem, há um ditado que fala que o medo é muitas vezes pior que a
coisa em si, então me ocorreu que este era um rapaz que poderia se beneficiar
de ver seu pior pesadelo aparecer e ver que não era tão ruim quanto pensava...
Hermione ficou
sentada ali, de boca aberta.
– ...e Fred e
George lançaram um feitiço para fazer os cachecóis sobre nossas cabeças ficarem
escuros e embaçados, como se fôssemos reis mortos-vivos e aquelas fossem nossas
mortalhas solenes...
Ela não gostava
de onde essa história estava indo.
– ...e depois
de darmos para ele todos os doces que eu havia comprado, nós falamos algo como
‘Vamos dar dinheiro para ele! Ha ha ha! Aqui, uns nuques, menino! Pegue um
sicle de prata!’ e dançamos em volta dele e rimos malignamente e tudo o mais.
Acho que algumas pessoas na multidão quiseram intervir no início, mas a apatia
de espectador8 os impediu, pelo menos até verem o que estávamos
fazendo, e aí acho que ficaram confusos demais para fazer qualquer coisa.
Finalmente, ele falou num suspiro bem baixinho ‘vão embora’, então nós três
gritamos e saímos correndo, gritando algo sobre a luz estar nos queimando. Com
alguma sorte, ele não vai ter tanto medo de sofrer bullying no futuro. Isto se
chama terapia de dessensibilização9, inclusive.
Okay, ela não
havia adivinhado corretamente a direção que a história tomaria.
O fogo da
indignação que era um dos motores primários de Hermione queimou forte, mesmo
que parte dela de fato entendesse o que ele tentara fazer.
– Isso é
horrível! Você é horrível! Pobre garoto! O que você fez foi cruel!
– Eu acho que a
palavra que você quer é divertido, e neste caso você está fazendo a
pergunta errada. A pergunta correta é: eu fiz mais bem do que mal, ou mais mal
do que bem? Se tiver algum argumento para contribuir para esta questão,
fico feliz em ouvir, mas não aceitarei críticas antes que isto seja resolvido.
Eu certamente concordo que o que eu fiz parece horrível e cruel e
insensível, já que envolve um menininho assustado e tal, mas este dificilmente
é o xis da questão, não é mesmo? Isso se chama consequencialismo10,
inclusive, e significa que algo ser ruim ou bom não é determinado por parecer
ruim, ou cruel, ou algo assim, a única questão é como as coisas vão acabar –
quais são as consequências.
Hermione abriu
sua boca para dizer algo absolutamente arrasador, mas parece que infelizmente
se esquecera da parte em que deveria pensar em algo para dizer antes de abrir a
boca. Tudo em que pôde pensar foi:
– E se ele
tiver pesadelos?
– Honestamente,
não acho que ele precisava de ajuda para ter pesadelos, e se tiver pesadelos
com isto ao invés de outros, então serão pesadelos envolvendo monstros
que te dão chocolate, e isso meio que é a ideia, né.
O cérebro de
Hermione continuava a soluçar em confusão toda vez que tentava ficar
adequadamente brava.
– A sua vida é
sempre peculiar assim? – ela disse por fim.
O rosto de
Harry Potter brilhou de orgulho.
– Eu a faço
peculiar. Você está vendo hoje o produto de muito esforço e trabalho duro.
– Então... –
Hermione disse, e não terminou a frase, desconfortavelmente.
– Então, –
Harry Potter disse – quanto você de fato sabe sobre ciência? Eu sei Cálculo e
sei um pouco de teoria de probabilidade Bayesiana e teoria de decisões e um
tanto de ciência cognitiva, e eu já li As Palestras de Feynman11
(ou um volume, de qualquer forma) e Julgando sob Incertezas: Heurística e
Vieses12 e Linguagem em Pensamento e Ação13 e Influência:
Ciência e Prática14 e Escolhas Racionais em um Mundo Incerto15
e Godel, Escher, Bach16 e Um Passo Mais Além17
e...
O quiz e o
contra-quiz que se seguiram continuaram por vários minutos antes de serem
interrompidos por outra batida tímida à porta.
– Entre! –
disseram ela e Harry Potter quase simultaneamente, e a porta se abriu para
revelar Neville Longbottom.
Neville agora estava
realmente chorando.
– Eu fui até o
primeiro vagão e encontrei um m-monitor mas ele me d-disse que eu não deveria
incomodar os monitores com coisas como s-sapos perdidos.
O rosto d’O-Menino-Que-Sobreviveu
mudou. Seus lábios se apertaram numa linha fina. Sua voz, quando falou, estava
calma e sinistra.
– Quais eram as
cores dele? Verde e prata?
– N-não, o
distintivo era v-vermelho e dourado.
– Vermelho e
dourado! – soltou Hermione – Mas essas são as cores da Grifinória!
Harry Potter sibilou,
um som assustador que poderia ter vindo de uma cobra, e fez tanto ela quando
Neville vacilarem.
– Suponho
– cuspiu Harry Pottar – que encontrar o sapo de um aluno de primeiro ano não é heroico
o suficiente para estar à altura de um monitor da Grifinória. Vem,
Neville, eu vou com você desta vez, vamos ver se o Menino-Que-Sobreviveu vai
receber mais atenção. Primeiro, vamos achar um monitor que saiba um feitiço
útil, e se isso não funcionar, vamos encontrar um monitor que não tenha medo de
sujar as mãos, e se isso também não funcionar, eu começo a recrutar fãs
meus e, se tivermos que fazer isso, vamos desmontar o trem inteiro, até o
último parafuso.
O
Menino-Que-Sobreviveu se levantou e pegou a mão de Neville, e Hermione percebeu
de repente que eles eram quase da mesma altura, apesar de parte de seu cérebro
insistir que ele era pelo menos 30 centímetros maior que aquilo, e que Neville
era pelo menos 15 centímetros mais baixo.
– Fica! – Harry
Potter lhe deu a ordem – não, espera, foi para o malão – e fechou a
porta atrás de si com firmeza ao sair.
Ela
provavelmente deveria ter ido com eles, mas em um instante Harry Potter ficara
tão assustador que ela estava na verdade um tanto aliviada por não ter pensado
em sugerir isso.
A mente de
Hermione agora estava tão embaralhada que ela achou que nem conseguiria ler
“História: Uma Hogwarts”. Ela sentiu como se tivesse acabado de ser atropelada
por um rolo compressor e transformada em uma panqueca. Ela não sabia o que
estava pensando ou o que estava sentindo ou o porquê. Ela simplesmente se
sentou perto da janela e ficou observando a paisagem mudar.
Bem, ela sabia
pelo menos que estava se sentindo um pouquinho triste por dentro.
Talvez a
Grifinória não fosse tão maravilhosa como imaginara.
1 viés positivo
2 seis quarks
3 Up, Down, Strange, Charm, Truth, Beauty
4 PT (party,
grupo, time)
5 PC ou NPC
6 projeto
Baconiano
7 Problema 2-4-6
(por Peter Cathcart Wason)
8 apatia de
espectador (bystander apathy)
9 terapia de
dessensibilização
10
consequencialismo
11 Palestras de
Feynman
12 Julgando sob
Incertezas: Heurística e Vieses
13 Linguagem em
Pensamento e Ação
14 Influência:
Ciência e Prática
15 Escolhas
Racionais em um Mundo Incerto
16 Godel, Escher,
Bach
17 Um Passo Mais Além
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