Review: People Watching

Olá leitores e leitoras!
Acho que já passamos do ponto em nosso relacionamento em que preciso justificar minhas longas ausências, não é? Sou assim nessa internet, infelizmente, e a cada ano que a vida adulta pesa mais nos meus ombros, menos tempo tenho.
Mas pelo lado bom, vocês podem ter certeza de que só vou aparecer por aqui quando tiver algo MUITO BOM pra compartilhar!

Hoje venho aqui para falar com vocês de uma maravilhosa webseries¹: "People Watching - I think they watch me too".



O título é na realidade uma conhecida expressão em inglês, que significa "observar as pessoas". Esta atividade consiste em observar as pessoas e suas interações, normalmente sem que saibam disso.
Mas é importante ressaltar que isso não é o mesmo que espionar alguém. People watching envolve uma análise distanciada e impessoal, na qual o observador tenta detectar idiossincrasias² para adivinhar/entender a história da pessoa observada, por pura curiosidade. Isto inclui analisar o discurso, as interações e relações interpessoais, linguagem corporal, expressões, roupas e atividades. Enquanto alguns reconhecem isso como um hobby, a maioria faz isso sem perceber, subconscientemente, todos os dias. O subtítulo, "I think they watch me too", significa "acho que me observam também", e dá contexto aos personagens da série.

Observar as pessoas faz parte do ser humano, é uma característica que evoluiu conosco como parte de uma espécie que vive em sociedade. Temos que ser capazes de identificar potenciais aliados e inimigos, bem como fontes de informações ou outras coisas que possamos precisar. O termo people watching surgiu do fato de que nos tornamos conscientes disso, e passamos a transformar esta observação em algo racionalizado e mais profundo.
Como hobby, é compartilhado em geral por pessoas interessadas na psique humana e no seu entendimento.



Com isso tudo esclarecido, vamos à webseries em si:

People Watching é uma minisérie que explora conceitos como depressão, auto aversão, estereótipos sociais, opiniões preconcebidas, e nostalgia. Ambientada no Canadá, os personagens da série estão por volta dos 30 anos de idade, e praticam ou são alvo de people watching. Através disso, são discutidas abertamente ideias de certa forma impopulares a respeito da sociedade moderna e a forma como nós, como pessoas, fundamentalmente interagimos uns com os outros e com o ambiente em que nos encontramos. Seja mostrando uma mulher incrivelmente inteligente que trabalha como stripper discutindo como o conceito de speed dating³ é fundamentalmente falho, ou um homem bonito e esperto com um trabalho excelente e uma casa incrível que anda assim pode ser no fundo um completo perdedor.
(Sinopse traduzida e adaptada a partir da disponível no site IMDB)


Criada pelo canadense Winston Rowntree, também criador do webcomic⁴ "Subnormality", a série é lançada pelo canal do YouTube americano Cracked, com o qual o autor já havia formado parcerias nos vídeos da série After Hours (2010) por exemplo, e hoje em dia vai também ao ar na CBC Television, uma rede canadense de televisão. A série já conta com duas temporadas, a primeira com 10 episódios e a segunda atualmente com 8 episódios lançados. O financiamento é feito através de crowdfunding via Patreon, ou seja, pelas doações de fãs que apoiam o artista e seu trabalho, e pela empresa Independent Production Fund, uma fundação canadense privada independente que apóia a produção de conteúdo de entretenimento de mídia digital. A animação é criada em parceria com a One World Animation, cujo objetivo é facilitar e auxiliar a produção de animações 2D.

O autor tem seu trabalho caracterizado por uma intensa verborragia, seja no quadrinho ou na série. Os personagens de ambos os projetos são diferentes, mas as ideias originalmente contidas nas páginas de Subnormality ("Subnormalidade", em português) são muitas vezes levadas para o formato animado para uma discussão mais dinâmica. Seu trabalho é marcado pela ironia, e a série acompanha personagens e suas reflexões ao longo do seu cotidiano, mostrando a vida como ela é.
Enquanto as tirinhas são em sua maioria mais puxadas para o lado cômico e absurdo (apesar de ainda serem em geral comentários e desconstruções de conceitos e ideias a respeito da natureza humana), People Watching tem um tom mais sério.

Esfinge da série de tirinhas "12 Days of Sphynx-Mas⁵" onde
aprendemos o verdadeiro significado de ser um monstro.

Bem, agora vamos à minha análise da série:

Em termos estéticos e técnicos, a animação é simples, mas de qualidade, e o desenho é cheio de detalhes, mantendo fielmente o traço do autor. A ambientação e sonografia são na minha opinião ideais, e apesar de o conjunto da obra não ser complexo, transmite o cuidado e o carinho adotado pelos responsáveis pelo projeto, e é eficiente em passar as mensagens da série com a iluminação, cores e fotografia.

Como webseries, People Watching segue o que propõe, abordando de forma visual e discursiva questões que hoje estão em alta, mas que ainda lutam para serem abertamente discutidas. São vídeos que incomodam, mas cativam. São vídeos que permitem ao telespectador se identificar e se beneficiar da sensação de que não está sozinho em se sentir de uma determinada forma. Os vídeos no YouTube são brindados com uma infinidade de comentários de pessoas que estão sendo ajudadas e se sentindo parte de uma comunidade em coisas que antes as faziam sentir-se distanciadas.

Temporada 1, Episódio 9: "Assistindo Filmes Em Casa X No Cinema", no qual contrastam a maneira como conversamos e trocamos ideias quando vemos filmes com amigos em casa e a maneira como devemos ficar calados no cinema mesmo quando vemos algo absurdo de errado/ruim, e alguns personagens decidem simplesmente sair da sala e conversar no final.




Temporada 1, Episódio 7: "O Único Grupo de Auto-ajuda No Qual De Fato Entraríamos", no qual os personagens "descolados" e atraentes da série fazem parte de um grupo ficcional chamado "Secretamente Perdedores Anônimos" (Secret Losers Anonymous), onde falam sobre como na realidade suas vidas impressionantes escondem solidão e fracasso.

Cada vídeo aborda um tema diferente, apesar de haver sim uma conexão clara entre cada episódio, com referências e uma certa cronologia. Cada personagem é tridimensional e profundo à sua maneira.

Apesar de serem temas complexos e, devido à verborragia, difíceis de acompanhar em raciocínio, vale à pena investir o esforço mental para tal. Esta é uma série que, ao fim de cada episódio, demanda e portanto causa um período de reflexão e análise que dura mais que alguns poucos minutos, e esta é a beleza da coisa. Não dá para assistir tudo seguido, você precisa parar e pensar a respeito do que acabou de ver. Às vezes discordamos da ideia e/ou argumentos apresentados, às vezes concordamos inteiramente e nos sentimos parte de toda uma comunidade anônima, e outras vezes concordamos em parte, discordamos em parte, e saímos do episódio com novas ideias.

É exatamente por isso que a sensação após assistir a série é a de ter malhado o cérebro na academia, especialmente para quem não é falante nativo de inglês, uma vez que as discussões apresentadas são complexas por si só, e ao acrescentar uma barreira linguística a coisa não fica exatamente mais fácil. Mas há legendas em português (de qualidade, é importante acrescentar), e basta apenas ativá-las nos vídeos, apesar de eu recomendar fortemente aos fluentes que se desafiem a passar pela experiência de assistir aos vídeos no idioma original apenas.

Mas assim como dizem que é ir à academia (uma vez que eu nunca duro nessa merda, mas até que já me senti um pouquinho dessa forma), o telespectador sai da experiência se sentindo bem por ter tirado o tempo de fazer aquele esforço, que ao contrário de físico é mental, e, ao invés da saúde do corpo, promove um bem-estar mental e uma sensação de termos aumentado nem que seja um pouquinho nossa inteligência e capacidade de análise, além de nos sentirmos mais informados e empáticos com relação aos sentimentos alheios.

Temporada 1, Episódio 3: "Porque Namorar Com Depressão É Tão Difícil", no qual  a personagem Safra tem um encontro com Jeremy e conta sobre sua depressão e como ela influencia sua vida. Neste print vemos a personificação da depressão de Safra, um homem que a faz se sentir incapaz, burra e indesejada.

Temporada 1, Episódio 2: "Porque Confessionários Não Religiosos Deveriam Existir", no qual as pessoas podem entrar em uma cabine temporária de confessionário para desabafar seus problemas e receios, e ao final todos descobrem exatamente quantas outras pessoas também passam por aquilo.

Podemos sentir toda a sorte de coisas durante os vídeos: culpa, raiva, animação, medo, dúvida, alegria, tristeza, desconforto. Mas ao final, sempre saímos com algo a mais em nossas vidas, uma gotinha a mais de sabedoria, seja ela derivada das ideias fornecidas ou da reflexão e discordância que nós mesmos desenvolvemos.

Temporada 2, Episódio 6: "Preconceito", no qual a stripper Candy desabafa com a amiga Janis a respeito da dificuldade que é usar sites de namoro online, one só julgam as pessoas pela aparência e poucas informações, ao invés de realmente lerem seu perfil e se importarem com o que ela gosta ou pensa. Há  depois um grande plot twist de quebrar o coração...

Temporada 2, Episódio 3: "Moradores De Rua Me Incomodam", que fala dessa realidade que sempre evitamos.

Temporada 2, Episódio 8: "O Museu de Realidades Alternativas", reflexão que ocorre na mente de Candy, a respeito das possibilidades que não foram, e conversando com todas as versões de seu "eu" que existiriam se ela tivesse tomado escolhas "mais certas", e que ela imagina que seriam sempre melhores do que ela atualmente é.

No todo, recomendo esta série a qualquer ser humano pensante, qualquer mente sedenta de reflexões e raciocínio, e qualquer amante de sociologia e filosofia.

Para aqueles que se interessaram em People Watching e gostariam de assistir a série, deixo aqui alguns links:

Playlist do canal Cracked (YouTube, dá para ativar as legendas com tranquilidade)
Página no site VirusComix, onde Subnormality também é publicado e onde podemos encontrar vídeos com cenas extras da série.

Para os interessados nos quadrinhos Subnormality (ATENÇÃO: todos em inglês), clique para acessar a página no VirusComix.

E aqui está a página de Subnormality no Facebook, para aqueles que quiserem updates de quando houver coisa nova no ar.

A exemplo do autor destes trabalhos maravilhosos, eu poderia continuar minha já não tão discreta verborragia e entrar numa lista de alguns conceitos tratados na série, como o de "um Eu alternativo", "isolamento dos atraentes", "honestidade brutal", entre muitos outros, mas depois de refletir, acredito que não seja a hora nem o lugar para tal. Acredito que cada um de nós deva assistir e tirar conclusões por si mesmo. Mas uma lista (em inglês) de alguns tópicos abordados pode ser encontrada na página de People Watching no site TV Tropes.

E com esta observação, eu os deixo por hoje. Agradeço imensamente àqueles que leram todo o post e que ainda aparecem aqui, no Blog Misfit, que talvez não seja tão desajustado assim.
Até a próxima! :)



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>>>>GLOSSÁRIO:

¹ webseries: literalmente, série (em vídeo) lançada na web, ou seja, na internet.

² idiossincrasia: característica comportamental ou estrutural peculiar a um indivíduo ou grupo. O termo tem vários sentidos, variando de acordo com o contexto em que é empregado, sendo também possível ser aplicado para símbolos que significam algo para uma pessoa ou grupo em particular.

³ speed dating: "encontros rápidos" em tradução literal, é uma prática na qual pessoas se reúnem em um determinado local para uma rotação de mesas na qual conhecem umas às outras com intenção romântica. A parte da rapidez se refere ao tempo limite que cada dupla tem para se conhecer, em geral 5 minutos ou algo próximo a isso.

⁴ webcomic: como provavelmente já deduziram, trata-se de uma história em quadrinhos lançada na internet.

"12 Days of Sphynx-Mas": brincadeira com os nomes "Sphynx" (Esfinge) e X-Mas (forma festiva de escrever "Christmas" ("Natal" em inglês). Talvez pudesse ser traduzido como "12 Dias de Natal com a Esfinge".


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Fontes:

Dicionário - idiossincrasia: https://www.significados.com.br/idiossincrasia/
IMDB - People Watching: https://www.imdb.com/title/tt6565886/?ref_=ttpl_pl_tt
IMDB - Winston Rowntree: https://www.imdb.com/name/nm6970918/
TV Tropes - People Watching:
https://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/WebAnimation/PeopleWatching
TV Tropes - Subnormality: https://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Webcomic/Subnormality
Wikia - Subnormality: http://subnormality.wikia.com/wiki/People_Watching
Wikipedia - People Watching: https://en.wikipedia.org/wiki/People_watching
Wikipedia - Subnormality: https://en.wikipedia.org/wiki/Subnormality

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